domingo, 15 de fevereiro de 2009

Lembranças 1

Hoje lembrei-me da minha avó. Uma mulher fantástica de quem gosto de pensar que herdei alguma coisa. Uma daquelas mulheres que me faz lembrar algumas das personagens de Agustina, de raiz cravada na terra, de mão na enxada e na foice, de olhar fito no essencial.
Associada à minha avó, a minha bisavó, que eu via chegar de meses em meses (tinha sete filhos espalhados por dois distritos, passava em casa de cada um mês). Chegava de mala e cuia, com um grande saco cheio dos mais variados chás e uma cafeteira pretíssima onde fazia os chás, na lareira da minha avó, e uma cabeça de histórias, sobretudo de bruxas e encantamentos. Fazia versos ao jeito das quadras populares, diz a minha mãe que talvez venha daí o meu algum jeito para a escrita. Às seis filhas e às netas e bisnetas costumava dizer “Muito cuidadinho com os homens! São como as trempes, quando não queimam mascarram” (utilizava outra palavra – “escravunçam”, mas esta não a encontro em dicionário nenhum!).
Ambas casaram com homem fracos, ambas tomaram as rédeas do governo da casa. A minha bisavó, filha de casa abundante, apaixonou-se por um Zé Ninguém pequenino que conheceu num bailarico, explicava ela anos mais tarde o desvario da paixão e a vida de privações “ele balhava tão bem…”.
A minha avó, sagaz, de olho na experiência da mãe e nas provações de infância, casou rica, pensava ela. O meu avô, filho da patroa que a contratara para a apanha da azeitona, alfaiate, profissão de família, letrado e amante de leituras parecia um bom partido. Depois duns meses de namoro, e de muitas viagens de burro entre a terra dum e doutro, lá se fez a boda. Quatro filhas mais tarde, com uma crise enorme, sem trabalho na alfaiataria e com um homem que achava que era desprezo trabalhar no campo, arregaçou as mangas e foi trabalhar à jorna, ceifar, cavar, apanhar alecrim.
Uma morreu com 98, só tendo ido ao médico na altura da morte, sem nunca ter bebido leite (não gostava), o seu pequeno-almoço era um copo de vinho tinto e uma fatia de toucinho assado.
A minha avó morreu faz agora em Julho dois anos, com 96, era do signo leão. Conheço três mulheres de signo leão, todas mulheres inteiras, de coluna vertebral. Parece que a estou a ver, com os seus olhos azuis, a perna bem feita do seu orgulho, desempoeirada a ensinar-me a amassar o pão, a lavar as meias na pia de pedra, à beira do caminho e a ralhar com a minha mãe por me deixar tomar banho todos os dias. Tenho muitas saudades dela.
Nem uma nem outra sabiam ler nem escrever, mas possuíam uma sabedoria e uma visão do mundo inigualáveis. Recordo-as muitas vezes, mulheres anónimas, de quem não consta nenhum feito digno de nota em nenhum jornal ou livro, mas que foram únicas. Heroínas.

9 comentários:

luiz alfredo motta fontana disse...

Há de ser...

Há de ser mulher como tu para descrever a fibra em tons delicados.

Há de ser cúmplice da poesia para produzir tal prosa.

Há de ser neta e bisneta para poder sorrir entrelinhas.

Anónimo disse...

Pois minha cara amiga, não há pai para os leões(eu sou um ,mas "só" de signo)!Também tenho saudades dos meus avós maternos das eiras da lagoa, pessoas fantásticas que nunca esquecerei, fazem parte das minhas referências como ser humano.A eles agradeço esta frontalidade que teimo em não perder..

Fénix disse...

Essa coisa dos signos... tenho de fazer um esforço para me dar com leões. E casar com um zé ninguém? Não é o dinheiro que faz a felicidade. Se eu não chegar lá de Ferrari, chego de Fiat, mas chego.

As gentes antigas, também convivi com elas, e lembro-me bem da mania de inventarem palavras ( mas eles compreendiam-se :), mas também me lembro da fibra que tinham.
Não tenho vergonha nenhuma da minha família materna, tenho até muito orgulho. Aprende-se com os antigos, coisas que nós não saberemos transmitir a esta juventude.

Anónimo disse...

È bom ter orgulho de família. Passeei por aqui, por este blog, por esta serra que a encanta e que me encanta. pelas festas dos miúdos, pelos momentos felizes quiçá fugazes mas mesmo assim deixando boas recordações e vejo sempre aquela mulher sensível que admiro.
Bj amiga.
Maria Antonieta

Angelo disse...

Belo post!!!
Consegui até vê-las de certa forma!

prafrente disse...

É bom guardarmos essas gratas recordações dentro do nosso coração.Seria melhor se cada um de nós tivesse a sensibilidade para dizer ás pessoas que nos rodeiam e por temos uma maior admiração,o quanto gostamos delas...

Boa semana

SILVA NETO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
SILVA NETO disse...

Quanto aos signos... Tretas! Este texto está MUITO BEM ESCRITO. SOBERBO!
Os homens pequenos, talvez de uns pouco correctamente apelidados "Zé Ninguéns" , também as construiram, na sua enorme sapiência. Até ai, essas matriarcas, terão sido irrepetivelmente sábias... e esses homens pequenos não deixaram de ser, também, progenitores de uma nova e meritosa poetisa.

Anónimo disse...

Parabéns... tenho falta de memórias destas, que sorte a tua... beijinhos